Muito Além de Rodas e motores
Há 60 anos, a chocante estreia em uma nova atividade profissional
No dia 5 de setembro de 1963, há exatos 60 anos, fiz minha estreia como repórter de automobilismo no jornal O Estado de S. Paulo, sucedendo o anterior titular, Vladimir Bernick, que precisou dedicar-se à realização do trabalho de conclusão do curso de medicina.
E lá fui eu para o Autódromo de Interlagos para a cobertura do treino dos pilotos para a corrida 500 Quilômetros de Interlagos, que já ganhara prestígio com a organização do Automóvel Clube Paulista, sucursal de São Paulo do Automóvel Clube do Brasil, que regia o automobilismo esportivo até a fundação da Confederação Brasileira de Automobilismo.
Essa corrida foi idealizada para comemorar o Dia da Independência do País e inspirada na 500 Milhas de Indianápolis, dos Estados Unidos, a mais veloz competição do mundo. E seguindo o mesmo molde, a corrida 500 Quilômetros de Interlagos era disputada pelo circuito externo do autódromo, tornou-se a mais veloz corrida brasileira.
Fui muito bem-recebido pelo senhor Ângelo Juliano, um dos criadores dessa prova e presidente do Automóvel Clube Paulista. Muito cortês e atencioso, o senhor Ângelo Juliano me recebeu sob a ponte da Pirelli, que permitia a travessia da pista para o acesso aos boxes do autódromo.
Com sua cordialidade me deu uma rápida aula sobre automobilismo e estava transmitindo mais informações sobre a corrida quando um forte ruído de excessiva rotação de um motor vindo do final da subida, que antecedia a reta de chegada, um carro levantou voo após chocar-se com uma mureta da parte interna da curva e, como um avião ou um disco voador, foi cair atrás dos boxes sobre várias pessoas que trabalhavam ou, simplesmente, amantes do automobilismo que foram assistir aos treinos.
É importante explicar que na década de 1960, a posição dos boxes era bem diferente de hoje. Ficava localizado logo após a curva depois da subida, chamada de subida dos boxes, mais ou menos onde hoje é a curva do Café.
Foi uma cena chocante, porque o barulho do motor, o curto voo e a aterrissagem do carro foram impressionantes. O senhor Ângelo Juliano gritou assustado: “Minha Nossa Senhora, me ajude e proteja esse piloto” enquanto acompanhou a trajetória do carro no ar até esconder-se atrás dos boxes. Ele correu para o local do acidente, onde transmitiu orientações a outros dirigentes e fiscais de pista e o pessoal de assistência médica.
Depois, muito abatido, disse que, além do piloto Edmundo Bonotti, mais duas ou três pessoas tinham falecido, além de vários feridos. Embora desolado, não perdeu a concentração das ações. Na verdade, o acidente foi chocante, com a perda de vida de algumas pessoas, num dia que deveria ser de festa e não de tristeza.
Como se diz em momentos adversos, a bruxa esteve solta naquele fim de semana porque no domingo, logo na primeira volta da prova, um novo acidente ocorreu provocando a morte do famoso piloto Celso Lara Barberis, que admirei, mas não tive oportunidade de conhecer pessoalmente.
Me senti abalado. Logo na primeira reportagem sobre um novo esporte ocorreram dois acidentes fatais, chocantes e entristecedores. Pensei em desistir, mas lembrei da responsabilidade que havia assumido com o antigo titular e resolvi permanecer num esporte em que fiz muitos amigos, conheci importantes personalidades, competentes mecânicos e até alguns artistas. E aqui estou, às portas dos 90 anos e ainda aprendendo e conhecendo gente bacana.
A corrida era para carros da categoria Mecânica Continental, que reunia monopostos Ferrari, Maserati, Alfa Romeo e de outras marcas em desuso pela rápida modernização da categoria e tinham seus motores originais substituídos preferencialmente por Ford ou Chevrolet Corvette, numa conjugação de coração novo em um corpo não tão novo que permitia a alguns brasileiros competirem com velozes carros, evitando, assim, que fossem transformados em sucata.
Um recurso idealizado pelos argentinos que utilizavam velhos automóveis para transformá-los em carreteras, em corridas em estradas não pavimentadas. Esses velhos carros recebiam preparação especial para competição e motores potentes que se transformaram em paixão argentina e foi essa categoria que revelou Juan Manuel Fangio e Froylan Gonzalez para as corridas internacionais e a conquista de cinco títulos mundiais. E também o brasileiro Chico Landi, vencedor de dois Grandes Prêmio de Bari, na Itália.
A categoria de carreteras foi também adotada em outros países da América do Sul e o Automóvel Clube da Argentina promoveu duas corridas internacionais, como a Buenos Aires-Lima-Buenos Aires e a Buenos Aires-Caracas na década de 1940.
O Brasil adotou as duas categorias. A de carreteras, para automóveis de Turismo, com domínio de Camilo Christófaro, e a Mecânica Continental para monopostos, em que Roberto Gallucci foi o principal destaque.
Mais próxima da Argentina, a categoria Carretera foi muito praticada no Rio Grande do Sul e as primeiras edições da corrida Milhas Brasileiras foram vencidas pelo gaúcho Catarina Andreatta, que, para provocar os paulistas, disse que eles eram muito bonzinhos por organizarem corrida para os gaúchos vencerem.
Isso porque, a corrida Mil MiIhas Brasileiras, disputada no Autódromo de Interlagos, teve três vitórias de Catarino Andreatta e Breno Fornari e uma de Aristides Bertuol e Orlando Menegaz nas quatro primeiras edições, naturalmente pela maior experiência acumulada.
Considero importante dedicar um espaço para o senhor Ângelo Juliano. Filho de imigrantes italianos, nasceu em São Paulo no dia 7 de abril de 1918 e, aos 14 anos, pretendendo comprar um automóvel para competir escondido dos pais, foi trabalhar para juntar o dinheiro necessário.
Apreciador de esportes, ainda muito jovem frequentava o clube Floresta, onde fez amizade com os atletas do remo, que o convidaram para participar das regatas como timoneiro por ser franzino, muito ágil e esperto. Mas sua paixão eram os carros. Com 19 anos tirou a carteira de motorista e, em 1939, comprou seu primeiro carro e no dia 12 de maio de 1940 participou da inauguração do Autódromo de Interlagos e, logo depois, em consequência da Segunda Guerra Mundial, assistiu às corridas de carros movidos por gasogênio, porque a gasolina deixou de ser vendida pela dificuldade de importação.
Como piloto, participou de corridas durante três anos, competindo em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná, com 10 vitórias e seis segundos lugares. Em 1956 foi promovido a diretor da Comissão Desportiva do Automóvel Clube do Brasil, seção São Paulo.
Foi amigo de Ademar de Barros, ex-governador do Estado de São Paulo, que teve um filho que participou de algumas provas da categoria Mecânica Continental.
Sua maior contribuição com o Automóvel Clube do Brasil está exposta na esquina formada pelas avenidas 9 de Julho e Brasil, na capital paulista. Com sua experiência imobiliária, quando assumiu a presidência da sucursal paulista do clube organizou a venda da casa da Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, sede anterior, e adquiriu o palacete localizado nos Jardins, considerada região mais valiosa em termos de patrimônio.